A ocorrência de suicídios com uma certa frequência, maior ou menor, é uma constante em todas as sociedades, em todo mundo. Diferente do câncer, do infarto do coração, dos derrames cerebrais, acidentes, infecções e outras condições que comumente frequentam as listas de causas de mortalidade, a prevenção do suicídio exige a atenção de amigos, familiares, colegas, professores, médicos, psicólogos, e até agentes sociais, do trabalho e de segurança para a identificação dos comportamentos, falas e atitudes que poderão indicar uma tendência suicida.
O risco de uma pessoa específica tentar o suicídio, com seu resultado letal e, mais comumente, suas sequelas, não aparecerá em exames de sangue, eletroencefalograma ou neuroimagem. Por isso, para a sua prevenção, é tão importante a atenção de todos ao sofrimento manifesto, aos pedidos de ajuda e até a situações de adoecimento físico, emocional, mental e social.
Num mundo em processo de ruptura e transformação de valores e laços sociais, em que as pessoas exigem, cada vez mais, de suas próprias vidas, autonomia e independência, deixando para trás valores de dependência e responsabilidade familiar, seu sucesso pode levar a um sentimento de falta do amor e suporte emocional familiar, e seu fracasso, com manutenção dos laços de dependência e submissão aos valores familiares, pode levar ao rebaixamento revoltado e solitário da autoimagem, e representam situações de autor-reprovação e desesperança. Neste contexto, rupturas amorosas, derrocadas financeiras, medo da falência, da ruína, de decepcionar amigos e familiares, de se envergonhar frente a eles, com um sentimento de não ter mais o direito de contar com a ajuda deles, poderão ser desencadeantes de ideias de suicídio, que se desfazem tão logo percebam que o mal momento se resolveu, que o grupo social foi muito mais acolhedor, afetuoso e interessado do que crítico, condenatório, que os antigos laços e responsabilidades se recuperaram, tão logo surgiu a necessidade, fortalecendo os antigos vínculos, ou que novos laços de apoio e apreço surgiram onde antes não se poderiam imaginar.
As pessoas que contemplam o suicídio encontram-se em grande sofrimento emocional, complicado comumente por várias formas de adoecimento, como os transtornos depressivos, ansiosos, psicóticos, explosivos, impulsivos, os transtornos decorrentes de experiências traumáticas amorosas, sociais, familiares, laborais ou escolares/acadêmicas – incluído aqui o assédio moral – especialmente quando prolongadas, mais ainda quando associadas ao uso de álcool e outras drogas, lícitas e ilícitas (chamadas assim de patologia dual). Estas condições de adoecimento podem tornar as pessoas que vivem contingências de crise menos capazes para enfrentar as situações críticas – mais pessimistas, mais desesperadas e mais impulsivas, repousando aqui o maior perigo. Quadros estes sujeitos a tratamento especializado com eficácia apreciável num grande número de casos.
Estes quadros, não raro, acompanham-se de problemas de saúde física, que afetam ainda mais a autoimagem, rebaixam o sentimento de auto eficácia, majoram indesejavelmente sua percepção de “inutilidade” e dependência, e agravam o sentimento de autorreprovação. Quando associado à dor crônica incapacitante, este conjunto de experiências pode ser percebido como insuportável, com os riscos correlatos. Que também por isso deve ser adequadamente tratado.
O atendimento aos aspectos emocionais do sofrimento, aos sintomas da doença mental que lhe agravam, a orientação e o suporte em relação a problemas relacionados ao abuso e à dependência de álcool e drogas, o tratamento dos problemas físicos em geral – particularmente, o tratamento adequado da dor – juntamente com o apoio na resolução dos problemas psicossociais e a outros fatores desencadeantes, são elementos indispensáveis na prevenção abrangente do suicídio.
A identificação precoce da inclinação de alguém ao suicídio pelas pessoas que com ela mantém contato é comumente precondição fundamental para que a ajuda possa ser provida.
O atendimento abrangente e acolhedor à pessoa que sobreviveu a uma tentativa de suicídio não deve ser menos cuidadoso: ao contrário! No grupo de risco, estas são especificamente as pessoas com maior risco para uma nova tentativa – mesmo que os que a repitam seja uma minoria.
Podem ajudar a suspeitar do risco de suicídio as expressões que revelam que alguém cogita “desistir de viver”, um interesse aumentado por temas ligados à morte, comportamentos de automutilação (cortar-se “para aliviar a dor”), preferências por comportamentos desnecessariamente perigosos, à identificação de sintomas de doença mental.
Os riscos aumentam na medida do acesso a meios eficazes para perpetrá-lo, em especial quando a pessoa está cogitando uma tentativa de suicídio exatamente com um meio a que tem fácil acesso – contra o qual devem-se tomar prontas providências (supervisão constante, afastar a pessoa destes meios, protegê-la contra seu emprego), até que melhorem suas condições emocional e psiquiátrica.
Constituem graves equívocos acreditar que não irá se matar quem fala em suicídio ou quem tentou ineficazmente (ao contrário!); que nada há por fazer por quem declara que deseja morrer (há muito o que fazer, e todos têm o seu papel); que a hereditariedade condena ou protege face ao suicídio, que são irrelevantes os suicídios que ocorrem em outras famílias – na verdade, a mera notícia de um suicídio numa família, aumenta os riscos em todos que tomaram conhecimento com a história do suicídio, independentemente de laços ou fronteiras familiares (chamado efeito Werther). De fato, falar de um suicídio na mídia é considerado um procedimento perigoso e várias estratégias têm sido recomendadas para diminuir o risco de “contágio” mental.
O fato é que 90% das pessoas que sobreviveram a uma tentativa de suicídio nunca mais tentarão. E que os relatos de sobreviventes de tentativas de suicídio dão conta de que a grande maioria se arrependeu imediatamente depois de seu ato – por exemplo, tão logo soltou-se da ponte. Por isso, não se deve negligenciar o pedido de ajuda de alguém que informou que acabou de tentar o suicídio – poderá, na maioria das vezes, acabar morrendo, de fato, por acidente, quando já não podia mais voltar atrás! A grande maioria dos sobreviventes muda de ideia em relação a este modo de lidar com o sofrimento ou vergonha, ou conseguiu permitir-se comunicá-los mais abertamente às pessoas que lhe são caras.
Esclarecer as pessoas sobre o suicídio é essencial para instrumentalizá-las em seu papel insubstituível de identificar, prevenir e apoiar quem precisa, apontar os caminhos de ajuda disponíveis, jamais discriminarem os sobreviventes de uma tentativa de suicídio – tão comum em emergências hospitalares e para motivar as pessoas a se interessarem responsavelmente pelo sofrimento uns dos outros – o que nos qualifica enquanto seres humanos. Até porque ninguém está livre de vir a precisar também de uma atenção assim, para si ou para pessoas que lhe são caras.
*Dr. Sander Fridman é professor da Pós-Graduação em Psiquiatria do IBCMED. É Mestre e Doutor em Psiquiatria pela UFRJ. Diretor Científico do Serviço de Doenças Afetivas da Santa Casa de Porto Alegre (SEDA), de 1991-1996. Responsável pelo Serviço de Atendimento às Depressões do Centro Médico Adventista de Botafogo de 2011-2018.