“BEBÊS REBORN”: O SILÊNCIO QUE GRITA
O fenômeno dos “bebês reborn”, bonecos realistas tratados como filhos em consultas médicas, ganhou destaque recentemente e gerou reações variadas: da curiosidade ao julgamento. Mas o que há por trás desse comportamento? Neste artigo, o Dr. Francisco Pascoal Jr., médico psiquiatra e coordenador da pós-graduação em Psiquiatria do ibcmed, oferece uma análise profunda e sensível sobre o tema.
Com base em conceitos como objeto transicional e vínculos de apego, ele propõe uma escuta clínica empática, que reconhece esses gestos como expressões legítimas de sofrimento psíquico. Um conteúdo essencial para profissionais e estudantes que desejam compreender, com embasamento científico, as nuances da saúde mental contemporânea.
Do Que Estamos Falando?
Nesta semana, um tema inusitado ganhou os holofotes midiáticos: mulheres levando “bebês reborn” — bonecos extremamente realistas — a consultas pediátricas, como se fossem filhos reais. A reação pública oscilou entre o espanto, o deboche e a patologização imediata. Mas o papel do psiquiatra e do
médico em formação não é o de julgar, e sim o de escutar. Escutar não apenas o que é dito, mas, sobretudo, o que se expressa nas entrelinhas, nos gestos, nas ausências e nas substituições simbólicas.
O Que Está Sendo Comunicado Silenciosamente?
O fenômeno dos bebês reborn, em sua superfície, pode parecer excêntrico ou até “louco”. Mas para quem escuta com a lente da empatia clínica, há ali uma
linguagem emocional densa. A mulher que busca uma consulta para seu bebê reborn, na verdade, está buscando ser vista — e não apenas como “usuária do serviço”, mas como alguém em sofrimento, como alguém que talvez esteja simbolicamente tentando cuidar de si mesma por meio daquele objeto
transicional.
O Apego e o Objeto Transicional
Donald Winnicott, em sua teoria sobre o objeto transicional, descreve como, na infância, objetos como paninhos e bichos de pelúcia funcionam como
substitutos simbólicos da mãe (objeto cuidador primário). Eles aliviam angústias e funcionam como pontes entre o “eu” e o mundo externo. Para alguns adultos, especialmente em contextos de trauma, luto, perda ou abandono, certos objetos podem retomar essa função reguladora. O bebê reborn pode funcionar como este objeto transicional tardio, uma tentativa criativa e desesperada de colar o que se quebrou internamente.
John Bowlby, ao estudar os vínculos de apego, mostrou que a perda ou a ameaça de perda de uma figura de apego pode gerar sofrimento psíquico intenso,
sendo muitas vezes invisibilizado na vida adulta. Em casos como esse, o bebê reborn pode representar uma tentativa inconsciente de restaurar ou manter um vínculo, de evitar o colapso interno, a fragmentação que a ausência absoluta causaria.
As Marcas do Cérebro
Do ponto de vista neurobiológico, o cérebro da mulher que cuida de um bebê reborn está ativando estruturas reais do circuito da vinculação: o hipotálamo
(liberação de ocitocina), a amígdala (modulação emocional), o córtex pré-frontal medial (empatia e regulação afetiva) e o sistema mesolímbico (motivação e prazer). Pesquisas com mães observando fotos de seus filhos ativam exatamente essas áreas. Em contextos de carência emocional extrema, o cérebro busca substituir o vínculo perdido por um vínculo possível — ainda que simbólico — para restaurar a “homeostase” afetiva.
A Escuta Clínica que Não Ri, Não Corrige, mas Acolhe e Investiga
A primeira lição para os alunos que se tornarão psiquiatras é: ninguém chega ao nosso consultório à toa. Há uma história por trás de cada gesto, mesmo os mais estranhos. Quando uma mulher chega com um bebê reborn, o primeiro movimento não é de interpretação, nem de correção, mas de acolhimento: “O que será que essa mulher quer nos dizer, quando traz esse boneco como se fosse um filho?”
A clínica exige uma escuta que não ridiculariza, mas que se sensibiliza diante do insólito como uma tentativa legítima — ainda que disfuncional — de
sobrevivência psíquica. Isso não significa que não haja sofrimento, nem que devamos reforçar o comportamento, mas sim que o julgamento apressado impede a escuta do que realmente importa.
Entre a Empatia e a Técnica
Vivemos em uma sociedade que silencia a dor psíquica, que apressa diagnósticos e que se esquece de que muitas pessoas estão tentando sobreviver
com o que têm à mão — mesmo que isso signifique cuidar de um bebê que não respira. Nosso papel, como psiquiatras e educadores, é ensinar a ver além da aparência, escutar além da fala e acolher o humano que resiste sob a forma de um boneco. Talvez aquele bebê não seja de plástico — talvez seja feito de perda, de solidão, de saudade e de amor reprimido.
Que a escuta clínica que ensinamos esteja sempre mais preocupada com o coração de quem sofre do que com a lógica do que parece estranho.
Rio de Janeiro-RJ, 15/05/2025.
Dr. Francisco Pascoal Jr. MD/PhD
HUGG/UNIRIO, Petrobras
Ibcmed/Inspirali