Ela largou tudo para viver em Muaná e concilia o seu atendimento de bicicleta aos moradores com a Pós em Pediatria do IBCMED
Certamente, você já se pegou reclamando por ter que acordar cedo. Por enfrentar horas no trânsito. Por encontrar alguma dificuldade no trabalho. Mas imagine largar uma vida confortável e um apartamento com vista para o mar para viver em um pequeno município da Ilha de Marajó, no Pará. Muaná é o nome da cidade, com pouco menos de 40 mil habitantes, que recebeu de braços abertos a jovem Dra. Luciana Nazaré Quaresma dos Reis, de 28 anos. De lá, ela parte, rotineiramente, para concluir com afinco a sua Pós-Graduação em Pediatria pela Faculdade IBCMED. Sai de madrugada, de barco Catamarã, e passa quase um dia inteiro viajando, até chegar em São Paulo (SP).
Mas como começou essa história?
Em dezembro passado ela deixou sua terra natal, São Luís, capital do estado do Maranhão, para integrar a equipe do Programa Mais Médicos, do Governo Federal. “As pessoas aqui são muito hospitaleiras e gentis. O secretário municipal de Saúde, Dr. Fabricio (Lobão Pereira), também me recebeu muito bem, e permitiu que eu fizesse alguns ajustes no consultório, colando adesivos e trazendo brinquedos”, reconhece.
“Estou aqui porque gosto e queria muito agradecer ao apoio do nosso secretário, Dr. Fabricio, do Dr. Roberto Chaves Castro, cardiologista e coordenador do Mais Médicos da Região de Muaná, e da equipe do Posto Amarino de Almeida”, garante a médica. Todos os dias, ela acorda às 7h da manhã e vai trabalhar no Posto de Saúde Central de bicicleta. Aliás, precisou aprender a andar de bicicleta para circular por Muaná e fazer visitações e acompanhamentos em lugares sem ruas nem pontes. São apenas tábuas que formam o caminho e ligam as casas. Algumas ficam no meio do mato. Os diversos tombos não a intimidaram.
Dra. Luciana brinca que, na gíria local, é “pau de dar em doido”. Ou seja, para ela, não tem tempo ruim. É guerreira, mas não quer carregar rótulos. Apenas quer contribuir para fazer a diferença e gosta de trabalhar com pessoas humildes. Ela, que tem um irmão especial (na foto, quando eram crianças), tem o sonho de criar um centro pediátrico de reabilitação com preço acessível, que faça a diferença para a população e contribua para a superação de mais crianças e jovens. “Vi todo o esforço da minha mãe, que também é médica, para a reabilitação do meu irmão e quero que mais gente tenha essa oportunidade”, projeta.
Assim, 560 quilômetros longe de casa, Dra. Luciana vem “enfrentando um leão por dia” com muita coragem. “Atendo muita gente. E ajudo as jovens mães desde o início, cuidando de sua alimentação, vacinas e vitaminas. Ainda ensino a trocar fraldas e a colocar pomada para evitar as assaduras dos bebês”, comenta a médica que também disponibiliza em seu consultório alguns produtos para o bem-estar dos pequenos pacientes. A profissional lembra que já atendeu crianças grávidas com 11 anos de idade e outras adolescentes de 13 anos. “O que pode parecer um absurdo para você, é a coisa mais normal para elas. São acostumadas e são felizes com muito pouco. E foi isso que me fez apaixonar por Marajó”, avalia.
Ela recorda que já tratou de muitos pacientes gravíssimos, vivenciando algumas cenas em que as mães suplicavam para que ela salvasse seus filhos. “Esta é a saúde no Brasil, mas tento fazer o trabalho da melhor forma possível pelas pessoas. Algumas passam a madrugada inteira com bebês no colo e outras enfrentam o sol forte, andando de canoa, só para chegarem no Posto, que é o principal na região e recebe gente de todos os lugares ‘do’ Marajó”, analisa.
Dor na pente?
Segundo ela, no local ainda é preciso enfrentar outras dificuldades. O linguajar é bem diferente. Dor pélvica é “dor na pente” (igual ao de cabelo). Fazer “procedência” é ir aos pés. “Fiquei baldiando” é vomitando. Além disso, ela também precisa se esforçar para conseguir se comunicar com os indígenas e com algumas pessoas especiais que têm muita dificuldade para se expressar e nem conseguem dizer onde é a dor que sentem. “E aqui temos tudo o quanto é doença tropical e ainda enfrentamos picadas de cobra, de aranha, de escorpião”, relata a Dra. Luciana, observando que a região concentra muitos animais como os botos (rosa, cinza e malhado), o bicho preguiça e o besouro potó, que causa queimaduras na pele.
“Se eu não fizer a minha parte, o que me adianta viver?”
Com sua bicicleta bordô, ela disse que já está conhecida por sua inseparável maletinha amarela. Ali, tem de tudo. “Andando por aqui, sempre posso encontrar alguém em crise. Preciso estar preparada, com estetoscópio e outros instrumentos, além de algumas medicações básicas”, esclarece. “Se eu não fizer a minha parte, o que me adianta viver?”, justifica. Por esse motivo e com o intuito de, a cada dia, poder ajudar mais o próximo, a Dra. Luciana, que se formou na Universidade CEUMA, está concluindo uma Pós-Graduação em Pediatria pela Faculdade IBCMED.
“Quando crescer, quero ser igual à Dra. Joelma (Gonçalves Martin, coordenadora do curso). Já na primeira aula fiquei sem palavras e escrevi um bilhete a ela, dizendo que compartilho do mesmo pensamento que ela possui, de que não existe Medicina engessada, e agradecendo por ser muito humana”, relembra, empolgada. “Acho ela muito disposta e sempre tira todas as nossas dúvidas. Na aula, deixa um tempo livre especialmente para isso”, salienta. “Quero poder retribuir (com o meu trabalho) todo o conhecimento que ela nos transmite, a cada aula”, idealiza.
Jornada puxada
E para poder cursar a Pós em São Paulo, a Dra. Luciana enfrenta uma jornada “bem puxada”. Acorda às 4h da madrugada e sai às 5h. Puxando sua mala pela rua escura e esforçando-se para não acordar a vizinhança, corre para pegar o barco Catamarã e ir mais rápido. De navio “luzeiro” (no qual muitos passageiros vão deitados em redes) não chegaria a tempo; levaria mais de seis horas. Além disso, nesse horário, não encontraria outra embarcação disponível para o trajeto. Aliás, lá não tem muitas embarcações fixas.
No Catamarã, percorre um extenso percurso (passando pelo Rio Jararaca, a Baía do Marajó, o Rio Pará, o Rio Carnapijó e o Rio Guajará). Com sorte, depois de duas horas e meia, chega a Belém, capital do Pará, e corre para o aeroporto. Dependendo do voo, chega a fazer até três escalas em outras capitais, como Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte para, finalmente, desembarcar em São Paulo.
Geralmente, chega à noite, por volta das 23h, para acompanhar as aulas no sábado de manhã. No domingo, depois do curso de Pós-Graduação, costuma embarcar no voo das 20h de São Paulo para Belém, onde dorme num hotelzinho. Retorna para Muaná apenas na segunda-feira. Nem por isso, ela quer ser “endeusada”. Mantém a humildade e os pés bem no chão. “Só quero fazer a minha parte e sei o quanto essas pessoas precisam de mim”, conclui.
Demografia Médica
Vale lembrar que o Maranhão, estado do qual a Dra. Luciana é natural, mantém o menor número de profissionais de Saúde entre as unidades federativas, com 0,87 médico por mil habitantes. Já o Pará, onde a jovem atua, segue este mesmo ranking, com razão de 0,97 médico por mil habitantes. Os dados integram a pesquisa Demografia Médica 2018, realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com o apoio institucional do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).